Comentários de uma Interculturalista sobre a cultura brasileira e seus hábitos de higiene

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família francesa no interior da França, minha “mãe de acolhimento” me perguntou qual tinha sido minha maior dificuldade até aquele momento. Já tendo aprendido que os franceses valorizam muito a honestidade e as respostas diretas, disse que tinham sido os hábitos de higiene.

Já deixo claro que não quero reforçar estereótipos sobre os franceses – mas sim, eles têm um padrão de higiene muito diferente do que estamos acostumados na cultura brasileira. Sempre falando de generalizações e média da população, diria que os franceses tomam banho todos os dias, mas banhos de não mais do que 10 min.

Eles também não trocam de roupas todos os dias, padrão historicamente explicado tanto pelo apreço aos uniformes e a igualdade entre as pessoas quanto à praticidade e economia de não se precisar lavar roupas todos os dias. Da mesma forma, acredito que não trocam lençóis e toalhas todas as semanas.

Utilizam muito a máquina lava-louças, mesmo sendo a base da comida francesa manteiga e ovo. E certamente não lavam banheiros e cozinhas duas vezes por semana. Também acho que a maioria tem apenas um paletó mais pesado para o inverno, que utilizam todos os dias de frio.

Sobre esse último padrão, preciso comentar uma experiência pessoal específica: no colégio, os alunos tinham o hábito de pendurar esse único casaco na sala de aula. Aquilo, somado a calefação, conferia um cheiro muito forte pra sala – que me obrigou a ir ao banheiro vomitar por pelo menos 3 vezes, que eu me lembre.

Cultura brasileira e “dente bom”

Outra diferença importante em relação à cultura brasileira são os dentes. Eles não são tão importantes para os franceses. Para eles, o intelectual fumante era, – e penso que ainda seja, – muito mais charmoso do que o sorriso colgate que os nossos hábitos de higiene valorizam.

Nesta experiência, foi a primeira vez na vida que me deparei com a dificuldade que os brasileiros têm de conferir autoridade para quem tem os dentes ruins. Via minha mãe francesa falando sobre Rousseau e Montaigne como nenhum brasileiro de classe média saberia falar sobre Caetano Veloso, mas aquilo me perturbava.

Como assim ela podia ser tão culta e ter dentes tão ruins? Vim a descobrir nos meus treinamentos com brasileiros que trabalham com franceses que eles também se incomodam. Dente bom no Brasil é também sinônimo de poder. Não há como conferir autoridade a quem não tem dentedentes bomns.

A nossa relação entre escravidão e hábitos de higiene

E Foi dessa boca sábia, mas sem alguns dentes, que veio um dos meus maiores aprendizados interculturais. Com muita calma, minha “mãe francesa” me respondeu: querida Mariana, eu entendo sua dificuldade. A – afinal de contas, soube que vocês brasileiros têm uma forma de utilizar a água que aqui na França seria considerada criminosa.

Apesar de a afirmação ter me chocado, na hora lembrei de minha mãe brasileira e seu hábito de lavar a calçada de nossa casa no interior com água de mangueira, e não pude achar que minha mãe francesa estivesse de todo errada. E ela continuou:

“tTambém sei que a manutenção desse alto padrão de higiene de vocês se deve muito a uma mentalidade escravocrata, a. Afinal, para manter uma casa tão limpa, sendo cozinhas e banheiros lavados com água, vassoura e pano de chão todos os dias, roupas lavadas todos os dias, jogos de cama e banho trocados toda semana e, principalmente, a opção de não usar a lava louças, se dá, ou porque vocês têm alguém que trabalha na casa de vocês 8 horas por dia, 5-6 dias por semana e para quem vocês não pagam o que seria digno do valor do trabalho, o que pragmaticamente é uma escravidão informal, ou a sua mãe, ao invés de estudar, cuidar de si, ter hobbies e vida pessoal, passou a vida toda cuidando da limpeza da família e da casa. Porque afinal de contas, ouvi dizer que no Brasil, você pode até ser “pobre, desde que seja limpinho”.”

Pronto, estava recebido o soco no estômago. E nunca parei de refletir e pesquisar sobre o assunto dessa conversa.

Aprendi que sim, somos um dos povos que mais desperdiçam água no mundo, e que isso tem a ver inclusive com a abundância de nossa natureza, afinal, temos as maiores reservas de água potável do mundo. Mas aprendi também que a neurose por hábitos de higiene do brasileiroa cultura brasileira também está realmente muito ligada à nossa história de escravidão.

Para além do pragmatismo da constatação da escravidão informal trazida pela consciência francesa, li em algum lugar que os negros aprenderam o prazer dos banhos de rio com os indígenas. No Brasil, vale dizer, o banho não é só uma questão de limpeza, é uma questão de prazer.

Um banho de 10 minutos são é sim suficientessuficiente prapara se ficar limpolimpar o corpo, mas nós precisamos dos nossos 20 minutos de água escorrendo para termos prazer e paz. E que atirem pedras aqueles que se asseiam mais rápido.

Mas, mais que isso, a limpeza era e é estratégia de ascensão social. Quanto mais limpo o escravo, menos incômodo do cheiro para o Senhor, maior a chance de sair da plantação e ir trabalhar na casa grande.

O mercado dos hábitos de higiene

Também durante os treinamentos, me dei conta que o brasileiro em geral não sabe que CC significa literalmente, cheiro de corpo. Para nós, o cheiro de corpo é tão malvisto,mal visto, que CC se tornou um adjetivo que remete a “catinga, fedor, sovaco”, ou qualquer cheiro ruim.

Isso diz tanto de nossa a relação da cultura brasileira com nosso corpo! A – além de fazer a alegria das empresas de produtos de higiene pessoal. Vocês sabiam que somos o segundo maior mercado do mundo dessa indústria, só perdendo para os EUA? Treinandos de empresas doeste setor têm histórias maravilhosas sobre as especificidades do desenvolvimento desses de produtos e marketing dos mesmos na cultura brasileira.

Mas o que choca sempre são os dentes. Brasileiro julga o dente de todo o mundo e acha que temos dentes bons porque combatemos a cárie ou por causa do malmau hálito, ou ainda porque, temos o imperativo de sorrir.

Eu ainda não consegui achar nenhuma fonte segura sobre isso, mas já ouvi várias histórias orais que contam da ligação entre nossa valorização dos dentes e a escravidão. Ou você não acha estranho que sejamos um dos únicos países do mundo onde as pessoas escovam os dentes três vezes ao dia, inclusive no ambiente de trabalho –?

comportamento pelo qual sSomos julgados por muitas culturas que acham este comportamento excessivo, ou só até mesmo nojento mesmo, . Não é comum compartilhar esse tipo de intimidade com os colegas de profissão.

E nossa indústria de dentistas? País que tem a área mais desenvolvida no mundo e que exporta os melhores profissionais!  Eu, por lógica, acabei comprando muito menos a estóriahistória das cariescáries e muito mais a dos escravos. Afinal de contas, diz-se que, há 132 anos, os melhores funcionários eram escolhidos pelos dentes. Porque a cavalo dado não se escolhe os dentes, – mas, se você tiver que comprar!…

Enfim, sei que tomamos em média 2 banhos de 20 minutos cada por dia. Trocamos de roupa quase todos os dias, preferimos a louça lavada à mão, escovamos os dentes três vezes ao dia e não toleramos cheiro de corpo.

Isso faz de nós o povo mais neurótico por higiene no mundo, e é um dos poucos consensos que consigo tirar dos brasileiros sobre seus julgamentos de outras culturas. Quem já viajou para o exterior ou morou fora certamente já se pegou julgando os padrões de higiene de alhures. – E e não estamos errados não. !

Temos realmente o mais alto padrão de higiene pessoal do mundo. Como interculturalista, sugiro: na próxima vez que você for julgar alguém pelos hábitos de higiene, respire fundo e reflita: realmente, nesse sentido, sou melhor que você. Graças à minha forma criminosa de lidar com a água e a minha mentalidade escravocrata.

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