Eu nunca joguei futebol, mas aquela sensação de ter todo mundo junto torcendo, sofrendo e vibrando por uma mesma coisa sempre foi parte importante de minhas memórias infantis.
Dois jogos marcantes para mim foram 1994, minha primeira grande alegria. Coitado do Baggio. Depois, 1998, a mais importante de todas. Depois de ter vivido 11 meses na França, estávamos lá, nós e eles, na final. Minha família hospedeira decidiu me levar para Paris!
E eles não acreditaram ao me ver chorar tanto no final da partida. Naquele momento acho que eles tiveram contato pela primeira vez com duas coisas muito importantes pra eles.
Primeiro: era possível alguém se emocionar tanto com uma partida de futebol. Eles ficaram tão preocupados comigo que se sentiram mesmo mal por terem ganhado. A eles lhes parecia que a minha tristeza com a derrota era maior que a felicidade deles com o título. Segundo: eles se emocionaram muito com o título. Pareciam estar rompendo com uma importante amarra iluminista que os mantinha distantes desse “jogo de emoções”.
E, já que estávamos lá mesmo, amarrei minha bandeira francesa nas costas e corri pra Champs Elysees, fazer parte de uma comoção nacional que segundo os franceses, não se via em Paris desde a revolução. Ouvir isso de um francês em Paris foi forte. E me senti parte da história! Aquela, que aqui no Brasil, estudamos a da França mesmo, já que nossa educação ainda sofre de complexo de periferia.
E eu repetia: “allez les bleus”, “ont est les champions” e cantava a Marseillaise numa fusão de sentimentos celebratórios de uma nova identidade em mim que depois daquele tempo todo finalmente se fazia simbolizada e sentimentos de luto daquele meu Brasil que já não conseguia me completar.
Acabada a festa, não havia táxi, metrô, ônibus, ou qualquer meio de transporte que pudesse nos levar para casa. Os franceses eram muito despreparados para esse tipo de evento. Éramos eu, com 17 anos, e minha “irmã francesa”, com 16.
“Nossos pais” estavam hospedados em Saint Dennis, perto do estádio, bien sur. E veio o medo. Como ir pra casa? Eram umas duas horas de caminhada até lá, numa época sem celular ou internet. E no início do fluxo migratório mais intenso que a Europa já viveu.
Futebol e imigração: Liberté, Égalité, Mbappé
Eu vivi uma França branca. Mas, naquela noite, quem nos levou de volta à Saint Dennis foram três imigrantes de origem árabe, um deles mulher. E tão forte quanto a emoção de estar em Paris na Final de 1998 foi meu medo naquela caminhada, sem saber direito para onde estava indo e lidando com todos os estereótipos, mitos e verdades sobre os imigrantes.
Chegamos bem em casa. Eles nos disseram um tchau seco e simples e seguimos nossas vidas. Voltei para lá algumas vezes desde então, a França não é mais branca e nem preciso mencionar o status que a questão migratória tomou.
Em tempos do pêndulo social pesando para valores mais conservadores, uma França campeã do mundo com 78% de sua equipe formada por imigrantes ou filhos de imigrantes, é uma emoção e alegria maior que qualquer título pudesse me dar como brasileira.
Liberté, Égalité, Mbappé ressoa em mim tão forte quanto me ressoou outrora a história da Revolução Francesa e o slogan original. Num contexto de construção de muros, filhos separados de pais, terrorismo, brexits e neonazismos – tudo isso no que já chamamos um dia primeiro mundo (porque tudo isso sempre aconteceu no resto do mundo), o simbolismo da vitória da equipe francesa reinstala a sensação de que de algum lugar a esperança e inspiração sempre reaparecerão e que continua em nossas mãos os destinos que daremos a elas.
Para mim, foi um daqueles dias em que se acredita em Deus e que se tem um alívio de que o bem, das maneiras mais inesperadas ou irônicas, também persevera. E um certo ajuste no equilíbrio da ordem mundial se refez, na minha cabeça.
Claro que eu ser brasileira deve justificar essa minha sensação de que um título de futebol muda o nosso mundo. Pois reafirmo aqui essa parte de minha identidade. Não tem mais escolha, os franceses vão ter que engolir: os imigrantes trouxeram a taça.
Ou eles celebram e reconhecem o papel fundamental e positivo da imigração ou francês nenhum tem direito a ficar feliz e orgulhoso. Pra não dizer toda a Europa e suas equipes nacionais. Não estou me esquecendo de Trump e Putin, mas me apego ao afago que esse título traz de que ainda que muito mal, a vida segue por vezes bem, também.
Allez les Bleus!