Comentários de uma Interculturalista sobre a cultura brasileira e seus hábitos de higiene

Por Mariana Barros

Eu sempre conto a história de quando, depois de 6 meses vivendo na casa de uma família francesa no interior da França, minha “mãe de acolhimento” me perguntou qual tinha sido minha maior dificuldade até aquele momento. Já tendo aprendido que os franceses valorizam muito a honestidade e as respostas diretas, disse que tinham sido as questões de higiene.

Não, não quero reforçar estereótipos sobre os franceses, mas sim, eles têm um padrão de higiene muito diferente do nosso. Sempre falando de generalizações e média da população, diria que os franceses tomam banho todos os dias, mas banhos de não mais do que 10 min. Não, eles não trocam de roupas todos os dias, padrão historicamente explicado tanto pelo apreço aos uniformes e a igualdade entre as pessoas quanto à praticidade e economia de não se precisar lavar roupas todos os dias. Acredito que não trocam lençóis e toalhas todas as semanas. Utilizam-se muito da lava-louças mesmo sendo a base da comida francesa manteiga e ovo. E certamente não lavam banheiros e cozinhas duas vezes por semana. Também acho que a maioria tem apenas um paletó mais pesado pro inverno que utilizam todos os dias. 

Sobre esse último padrão, preciso comentar uma experiência pessoal específica. No colégio, os alunos têm/tinham o hábito de pendurar esse único casaco na sala de aula. Aquilo, somado a calefação, conferia um cheiro muito forte pra sala que me obrigou a ir ao banheiro vomitar por pelo menos 3 vezes, que eu me lembre. Ah, os dentes. Não, eles não são tão importantes para os franceses. Para eles, o intelectual fumante era, e penso que ainda seja, muito mais charmoso do que o sorriso colgate. Mas foi a primeira vez na vida que me deparei com a dificuldade que os brasileiros têm de conferir autoridade para quem tem os dentes ruins. Via minha mãe francesa falando sobre Rousseau e Montaigne como nenhum brasileiro de classe média saberia falar sobre Caetano Veloso, mas aquilo me perturbava. Como assim ela podia ser tão culta e ter dentes tão ruins? Vim a descobrir nos meus treinamentos com brasileiros que trabalham com franceses que eles também se incomodam. Dente bom no Brasil é também sinônimo de poder.  Não há como conferir autoridade a quem não tem dente bom.

E dessa boca sábia, mas sem alguns dentes, veio um dos meus maiores aprendizados interculturais. Com muita calma, minha “mãe francesa” me respondeu: querida Mariana, eu entendo sua dificuldade. Afinal de contas, soube que vocês brasileiros têm uma forma de utilizar a água que aqui na França seria considerada criminosa. Apesar de a afirmação ter me chocado, na hora lembrei de minha mãe brasileira e seu hábito de lavar a calçada de nossa casa no interior com água de mangueira, e não pude achar que minha mãe francesa estivesse de todo errada. E ela continuou: também sei que a manutenção desse alto padrão de higiene de vocês se deve muito a uma mentalidade escravocrata, afinal, para manter uma casa tão limpa, sendo cozinhas e banheiros lavados com água, vassoura e pano de chão todos os dias, roupas lavadas todos os dias, jogos de cama e banho trocados toda semana e principalmente, a opção de não usar a lava louças, se dá, ou porque vocês têm alguém que trabalha na casa de vocês 8 horas por dia, 5-6 dias por semana e para quem vocês não pagam o que seria digno do valor do trabalho, o que pragmaticamente é uma escravidão informal, ou a sua mãe, ao invés de estudar, cuidar de si, ter hobbies e vida pessoal, passou a vida toda cuidando da limpeza da família e da casa. Porque afinal de contas, ouvi dizer que no Brasil, você pode até ser “pobre, desde que seja limpinho”.

Pronto, estava recebido o soco no estômago. E nunca parei de refletir e pesquisar sobre o assunto dessa conversa. Aprendi que sim, somos um dos povos que mais desperdiçam água no mundo, e que isso tem a ver inclusive com a abundância de nossa natureza, afinal, temos as maiores reservas de água potável do mundo. Mas aprendi também que a neurose por higiene do brasileiro também está realmente muito ligada à nossa história de escravidão. Para além do pragmatismo da constatação da escravidão informal trazida pela consciência francesa, li em algum lugar que os negros aprenderam o prazer dos banhos de rio com os indígenas. No Brasil, vale dizer, o banho não é só uma questão de limpeza, é uma questão de prazer.  10 minutos são sim suficientes pra se ficar limpo, mas nós precisamos dos nossos 20 minutos de água escorrendo para termos prazer e paz. E que atirem pedras aqueles que se asseiam mais rápido. Mas mais que isso, a limpeza era e é estratégia de ascensão social. Quanto mais limpo o escravo, menos incômodo do cheiro para o Senhor, maior a chance de sair da plantação e ir trabalhar na casa grande. Também durante os treinamentos me dei conta que o brasileiro em geral não sabe que CC significa literalmente, cheiro de corpo. Para nós, o cheiro de corpo é tão malvisto, que CC se tornou um adjetivo que remete a “catinga, fedor, sovaco”, ou qualquer cheiro ruim. Isso diz tanto de nossa relação com nosso corpo! Além de fazer a alegria das empresas de produtos de higiene pessoal. Vocês sabiam que somos o segundo maior mercado do mundo dessa indústria, só perdendo para os EUA? Treinandos de empresas do setor têm histórias maravilhosas sobre as especificidades do desenvolvimento desses produtos e marketing dos mesmos na cultura brasileira.

Mas o que choca sempre são os dentes. Brasileiro julga o dente de todo o mundo e acha que temos dentes bons porque combatemos a cárie ou por causa do mal hálito, ou ainda porque, temos o imperativo de sorrir. Eu ainda não consegui achar nenhuma fonte segura sobre isso, mas já ouvi várias histórias orais que contam da ligação entre nossa valorização dos dentes e a escravidão. Ou você não acha estranho que sejamos um dos únicos países do mundo onde as pessoas escovam os dentes três vezes ao dia, inclusive no ambiente de trabalho – comportamento pelo qual somos julgados por muitas culturas que acham excessivo, ou só nojento mesmo, compartilhar esse tipo de intimidade com os colegas de profissão. E nossa indústria de dentistas? País que tem a área mais desenvolvida no mundo e que exporta os melhores profissionais!  Eu, por lógica, acabei comprando muito menos a estória das caries e muito mais a dos escravos. Afinal de contas, diz-se que há 132 anos, os melhores funcionários eram escolhidos pelos dentes. Porque a cavalo dado não se escolhe os dentes, mas se você tiver que comprar!

Enfim, sei que tomamos em média 2 banhos de 20 minutos cada por dia. Trocamos de roupa quase todos os dias, preferimos a louça lavada à mão, escovamos os dentes três vezes ao dia e não toleramos cheiro de corpo. Isso faz de nós o povo mais neurótico por higiene no mundo, e é um dos poucos consensos que consigo tirar dos brasileiros sobre seus julgamentos de outras culturas. Quem já viajou para o exterior ou morou fora certamente já se pegou julgando os padrões de higiene de alhures. E não estamos errados não. Temos realmente o mais alto padrão de higiene pessoal do mundo. Como interculturalista, sugiro: na próxima vez que você for julgar alguém pelos hábitos de higiene, respire fundo e reflita: realmente, nesse sentido, sou melhor que você. Graças à minha forma criminosa de lidar com a água e a minha mentalidade escravocrata.

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